DESCONSTRUIR AS VERDADES NA IGREJA - UM CULTURA DO DIÁLOGO
Na Igreja, há diversas maneiras de pensar e compreender a fé e a vida. Qual será o melhor ou mais correto modelo de hermenêutica (interpretação) da fé? Será que não está na hora de desconstruir nossas verdades e relativizar nossas interpretações da fé? Talvez esta proposição inquiete os conservadores e alegre os liberais. Porém, tomem cuidado com as conclusões precipitadas antes do desenvolvimento do artigo. A fé às vezes parece obscurantista, inócua e geradora de sofrimento porque muitos grupos se autodeterminam ou se autodenominam detentores de uma Verdade que não possuem. A liberdade de pensar, sentir, falar, viver e expressar deve ser uma condição inerente ao ser humano. “Ação e política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade, e é difícil tocar em um problema político particular sem, implícita ou explicitamente, tocar em um problema de liberdade humana” (ARENDT, 2011, p. 191-192).
A verdade, do
ponto de vista antropológico, está inserida no âmbito de uma comunidade com
suas crenças, valores, práticas culturais e vivências afetivas. No âmbito da fé
católica, temos uma única verdade: “Jesus lhe respondeu: Eu sou o caminho, a
verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). Certamente esta
não é uma verdade para outras comunidades ou experiências humanas. Não estou
afirmando que necessitamos abdicar ou relativizar a Verdade-CRISTO, seria, como
cristão católico e presbítero, incongruente com a minha fé. Se não cresse
verdadeiramente que Jesus Cristo é o Senhor, sendo assim a única e suprema
VERDADE, não seria católico, muito menos padre. Mas estou tentando mostrar que
todos precisam desconstruir suas verdades para que a VERDADE transpareça e se
revele ao mundo.
Outro grave
problema é que, intra-eclesialmente, há muitas verdades ou hermenêuticas, e
cada um postula o direito de estar certo. Estamos imbricados e embrolhados em
nossos preconceitos, convicções e jogos de poder. Cegos guiando outros cegos,
pois os olhos estão vedados e a boca cerrada para o diálogo. Como é possível
superar as divisões e conflitos sem diálogo? “Se o nosso objetivo é sair do
conflito, a questão central é como fazer convergir domínios de significado divergentes.
Em virtude da centralidade da linguagem na construção das realidades
conflitantes, damos atenção particular ao diálogo. Será que não existem formas
de falarmos uns com os outros que permitam uma convivência mais amigável?”
(GERGEN, 2017, p. 74).
Quem pensa
diferente não é meu inimigo, mas apenas pensa de forma diferente de mim.
Desconstruir as verdades individuais é fundamental, pois acredito que valores,
o anúncio do evangelho e a eficácia da missão só são possíveis com a conexão
dos saberes e dos conhecimentos. “A Igreja não faz proselitismo. Ela cresce
muito mais por ‘atração’: como Cristo ‘atrai todos a si’ com a força do seu
amor, que culminou no sacrifício da Cruz, assim a Igreja cumpre a sua missão na
medida em que, associada a Cristo, cumpre a sua obra conformando-se em espírito
e concretamente com a caridade do seu Senhor” (BENTO XVI, 2007).
Não são as
verdades individuais absolutizadas que fazem chegar o amor de Cristo aos
homens, mas o testemunho verdadeiro de amor a Jesus faz com que a mensagem e as
obras da caridade cristã possam irradiar aos homens a VERDADE. “Convidar
pessoas a participarem em diálogos e a compartilharem histórias sobre suas
conquistas passadas e presentes, bens, potenciais inexplorados, inovações,
pontos fortes, pensamentos elevados, oportunidades, benchmarks, momentos altos,
valores vividos, tradições, competências essenciais e distintas, expressões de
sabedoria, percepções sobre o espírito e a alma corporativa mais profunda,
visões valorizadas e futuros possíveis podem identificar um núcleo da mudança
positiva” (COOPERRIDER et al., 2008, p. 19).
A ação mais
eficaz que um grupo pode tomar ao tentar construir um futuro melhor de forma
consciente é identificar o "núcleo positivo" de qualquer sistema e
compartilhá-lo abertamente com todos. Buscar ter um olhar positivo sobre o
outro, sem preconceitos, como disse o arcebispo franciscano de Maceió, Dom
Carlos Alberto Breis Pereira: “o pré-conceito condiciona o olhar”. Muitos
tendem a criar rótulos sobre os outros, mas, na verdade, ninguém sabe a verdade
plena de ninguém, no sentido do que há no interior de cada pessoa; somente Deus
sabe.
Desconstruir
para construir pode parecer um trocadilho simplista, mas, para alguns, é algo
profundo. Mas posso construir algo em cima de algo já construído ou
estabelecido como absoluto? Não estou dizendo que devemos cair em um niilismo
néscio, pois quem não gosta da verdade e das certezas das coisas? Por exemplo:
ter a certeza de que os jornalistas não vão deturpar as informações para beneficiar
seus grupos ideológicos ou a certeza de que a medicina encontrou o remédio para
alguma doença. Estamos aqui propondo que, para uma convivência pacífica, é
necessário respeitar quem pensa diferente. A verdade do outro é um modo dele
compreender sua vida e o mundo ao seu redor a partir da construção das relações
e da constante troca de saberes. Aceitar, respeitar e construir relações
pacíficas não significa abandonar minha fé ou o modo de compreender o mundo ao
meu redor. Significa desenvolver um espírito livre, capaz de utilizar as várias
formas de linguagem e manifestações culturais, antropológicas, teológicas,
científicas e sociais para edificar um mundo mais repleto de paz e amor. Sem
rótulos, preconceitos e discriminações. Os rótulos reduzem a complexidade da
realidade e a riqueza das relações humanas. O diálogo, ao contrário, abre
espaço para a descoberta mútua e para a valorização da singularidade de cada
pessoa.
Concluo com as
palavras do Cardeal Tolentino (2023): Algumas tarefas nunca terminam. Por
exemplo, aprender a ouvir, em vez de ter medo, pois ouvir é uma forma de
hospitalidade de vida, e o medo é uma forma de rejeição. Aprenda a associar, em
vez de dividir, porque quando o círculo se amplia, abraçamos mais o mundo.
Aprender a não apagar, mas a integrar o vórtice externo ou interno que irrompe
mesmo sem motivo aparente; a imperfeição que se esconde por toda parte e com a
qual apenas lutamos para nos reconciliar; o que à primeira vista é dissonante e
cujas possibilidades de harmonia compreenderemos mais tarde. Aprender a não
negligenciar, mas a interpretar a curva da solidão que surge no meio do
caminho; o vazio que em determinadas horas toma conta da nossa casa, tornando-a
desconhecida e quase abstrata; a sensação do que sentimos falta e do que nos dá
arrepios. Aprendendo com o tempo não a estratégia de fuga, mas a sabedoria
paciente da confiança, que nos coloca em Deus e diante dos outros tal como
somos. E somos frágeis e fortes, vacilantes e confiantes, competentes e
incapazes, desejantes e conformistas, sonhadores e já acomodados. Mas somos
filhos e filhas, irmãos e irmãs, e é por isso que a qualquer momento a força
comum da confiança pode sobrepor-se à dispersão e unir-se para que aconteça o
milagre que é o florescimento da vida.
REFERÊNCIAS
1. ARENDT, Hannah. *Entre o Passado e o Futuro*. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 191-192.
2. BENTO XVI. Homilia durante a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/homilies/2007/documents/hf_ben-xvi_hom_20070513_conference-brazil.html>. Acesso em: 19 jun. 2024.
3. COOPERRIDER, D. et al. *Manual da Investigação Apreciativa*. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2008.
4. GERGEN, Kenneth J.; GERGEN, Mary. *Construcionismo social: um convite ao diálogo*. Tradução Gabriel Fairman. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2010.
5. MENDONÇA, José Tolentino de. *O florescimento da vida*. Avvenire, 29 de novembro de 2023. Disponível em: <https://www.avvenire.it/rubriche/pagine/il-fiorire-della-vita>. Acesso em: 19 jun. 2024.
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